Mulheres Quilombolas falam sobre supressão de direitos e resistência
Em entrevista à ONU Mulheres, líderes quilombolas falam sobre supressão de direitos e resistência
Como parte da estratégia “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030”, a ONU Mulheres entrevistou as líderes quilombolas Célia Cristina da Silva Pinto e Maria Rosalina dos Santos, da Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas (CONAQ).
Segundo elas, as mulheres quilombolas estão cada vez mais expostas a variadas formas de violência, são mais afetadas por conflitos territoriais, empreendimentos desenvolvimentistas e pela supressão de direitos. No entanto, mesmo nesse cenário, essas comunidades resistem, afirmaram. Leia a entrevista.
As mulheres quilombolas estão expostas a variadas formas de violência, são mais afetadas por conflitos territoriais, empreendimentos desenvolvimentistas e pela supressão de direitos, o que compromete significativamente seu desenvolvimento social e econômico. Mesmo nesse cenário adverso, essas comunidades resistem.
Como parte da estratégia “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030”, a ONU Mulheres entrevistou as quilombolas Célia Cristina da Silva Pinto, da Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas (CONAQ), e Maria Rosalina dos Santos, também membro da CONAQ e coordenadora estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí.
Elas detalharam a realidade quilombola, sua atuação como liderança comunitária e abordaram o debate no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade do decreto 4.887/2003, que trata dos procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos.
Estimativas da CONAQ dão conta da existência de 130 mil famílias quilombolas no Brasil. Grande parte dessa população ainda vive em áreas rurais e distantes dos centros urbanos, já que o surgimento dos quilombos ocorreu em meio à necessidade de refúgio por parte dos negros que conseguiram escapar da escravização, que perdurou no país por mais de 300 anos (de 1530 a 1888).
Atualmente, essas comunidades são espaços de manutenção e resistência da cultura negra, da ancestralidade africana e têm sua sobrevivência vinculada à liderança de mulheres negras.
As comunidades quilombolas estão constituídas enquanto territórios tradicionais autodeterminados em função da origem étnica e racial dos seus moradores. Por isso, estão amparados pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante a esses grupos o direito ao controle da terra e das atividades que assegurem sua sobrevivência e desenvolvimento econômico como forma de fortalecer e manter suas identidades.
O país conta com aproximadamente 2,5 mil comunidades certificadas, de acordo com dados da Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura. Os dados estatísticos não têm a desagregação necessária para identificar quem é quilombola nos números totais das comunidades rurais brasileiras, o que torna milhares de mulheres e homens invisíveis às políticas públicas específicas, lembrou a ONU Mulheres.
A ausência de acesso aos direitos de saúde, educação, transporte público de qualidade, bem como a instabilidade jurídica com relação ao direito ao próprio território, revelam como o racismo institucional limita a sobrevivência digna dessa população, afirmou a agência da ONU.
As mulheres estão numa situação mais problemática. Enquanto os homens migram para as cidades mais próximas em busca de trabalho, elas permanecem no quilombo. Ali garantem o sustento, a partir do manejo dos recursos naturais, atuando para a organização social e transmissão dos saberes ancestrais.
Segundo a ONU Mulheres, as demandas das lideranças entrevistadas estão em linha com as recomendações do Plano de Ação da Década Internacional de Afrodescendentes 2015-2024, principalmente no que se refere à proteção de seus territórios, o que se coloca como um pré-requisito para o alcance de um Planeta 50-50 em 2030.
Acesso a políticas públicas
Segundo Maria Rosalina, uma das questões mais graves enfrentadas pelas mulheres quilombolas é a falta de acesso a políticas públicas referentes a terra, educação, saneamento básico, saúde, transporte, água, cultura e segurança para as mulheres.
“As políticas públicas não chegam aos quilombos como são colocadas no papel e, quando chegam, não nos reconhecemos nelas. Por exemplo, na educação, as escolas não incluem nossas histórias em seus currículos, nossas manifestações, não nos enxergamos. Na verdade, falta respeito com os quilombolas”, declarou.
Célia Cristina lembra que as comunidades quilombolas têm enfrentado cada vez mais o problema da falta de segurança e das drogas. “Fora a questão do próprio machismo e do racismo (…). O racismo faz com que as políticas não cheguem até nós, e o machismo provoca inúmeras violências: física, moral, psíquica”.
De acordo com Célia, as mulheres quilombolas se encarregam de cuidar das famílias e da vida da comunidade como um todo. “Esse poder de organização que a gente tem, essa sensibilidade, faz com que a gente acabe tomando conta de tudo. Hoje, na maioria das comunidades, as mulheres estão nas direções das associações, (mas) não como presidente (…). Há essa questão da invisibilidade, o homem sempre à frente e a mulher como coadjuvante, quando muitas vezes (na verdade) a mulher é a protagonista”, declarou.
Para Maria Rosalina, trata-se de uma herança histórica. Segundo ela, o Quilombo de Palmares não foi organizado por Zumbi, mas pela líder religiosa Acotirene. Hoje, com a saída dos homens para trabalhar, as mulheres precisam assumir as comunidades, suas tradições e manifestações culturais, e também a roça e a criação dos filhos e filhas. “As mulheres quilombolas são as detentoras dos saberes tradicionais, das rezas, da medicina natural e comidas típicas. Foram e são importantes na organização social, produtiva e de estratégias de resistência”, declarou.
Ela afirma que os grandes empreendimentos de desenvolvimento da mineração vêm destruindo as comunidades quilombolas, enquanto a principal vítima são as mulheres, que permanecem nas comunidades e sofrem os impactos dessa “neocolonização”. “A mineração não garante trabalho e nem renda para nós quilombolas. Então, o desenvolvimento é para quem? Temos comunidades sem energia elétrica, mas nas quais passa um trem com minério, o que faz com que as mulheres tenham que caminhar mais de 18 quilômetros para chegar a suas casas ou roças”, disse.
“A mineração, da maneira que foi empregada, está destruindo as comunidades, é um desenvolvimento que não é para nós. Temos uma comunidade que não tem energia, mas tem torres de captação para energia eólica. Para nós, é uma reescravização.”
Para Célia Cristina, as comunidades quilombolas estão sendo expulsas de seus territórios, e as mulheres são as que mais sofrem com isso, especialmente aquelas que vivem em áreas de conflito com os mineradores. “Elas estão ficando doentes por não saber se, por suas áreas não estarem regulamentadas, ficam ou saem do território. Temos muitos problemas com essas questões porque a insegurança afeta diretamente as nossas vidas”, disse.
Maria Rosalina lembra que existem comunidades quilombolas com mais de 300 anos de existência. “A terra para nós é nossa raiz. Se não tivermos a terra, nós estamos mortos. Não é a terra, mas o território e seus elementos constitutivos como parentesco e identidade. Afirmamos e reafirmamos isso, através modos de vida, que variam de uma comunidade para outra”, declarou.
Segundo Célia Cristina, a CONAQ discute de que forma o Decreto 4.887/2003, considerado inconstitucional, afetará ainda mais a vida dessas comunidades. “Do ano passado para cá, temos perdido nossas lideranças, homens e mulheres, por conta do conflito agrário”, disse.
“Mesmo que considerem o decreto inconstitucional, o Artigo 78 da Constituição Federal e a Convenção 169 da OIT permanecem e nós vamos brigar. Estamos nos mobilizando por outras normativas para que de fato a gente tenha nosso território. Não vamos desistir e vamos encontrar outras estratégias. Estamos lutando e não vamos ficar paradas. O Brasil também é quilombola.”
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