100 anos depois de hoje
100 anos depois de hoje

Por Thales Emmanuel**
Era o ano de 1917. A fome se alastrava na cidade e no campo, mas não para toda gente. Na cidade, as mazelas não atingiam os ricos capitalistas; no campo, a nobreza seguia ostentando o poder sobre as terras e, consequentemente, sobre o trabalho das famílias campesinas, que representavam 80% da população e eram obrigadas, por ordens do czar, a enviar seus filhos para morte no fronte de batalha da Primeira Guerra Mundial.
Czar era o título conferido aos imperadores da Rússia, uma espécie de rei, cujo poder se alicerçava na riqueza de seus amigos latifundiários, industriais e banqueiros, riqueza originada da exploração de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.

12 anos antes, em 1905, acontecimentos abalaram as estruturas daquela sociedade decadente. Em janeiro, dezenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras marcharam pelas ruas de São Petersburgo em direção ao Palácio de Inverno, residência do czar. Usavam símbolos religiosos. Não queriam guerra. Queriam que o imperador olhasse para eles, que ajudasse a sanar a difícil situação na qual estavam mergulhados. Mas o czar, indiferente à crucificação que pesava sobre a maioria da população, recebeu o povo à bala. O episódio, que ficou conhecido como Domingo Sangrento, foi o estopim para uma revolução popular.
Greves se espalharam rapidamente, soldados se rebelaram contra as ordens que vinham de cima. Nasceram os sovietes, os conselhos de operários, soldados e camponeses, que passaram a organizar, através da democracia direta, parte da produção, da imprensa e de outros setores da vida social. Com os sovietes, a classe trabalhadora descobriu, na prática, que não precisava de patrões.
A crise aperta e Nicolau II, o czar, dá a entender que vai recuar, prometendo reformas democráticas. Uma cilada! Quase nenhuma promessa é cumprida e a repressão ataca com força máxima as organizações da classe trabalhadora. Prisões, mortes e difamações. A maré da luta dos de baixo reflui, como se precisasse ganhar novo fôlego. Alguns conseguem escapar para o exílio. Mais uma importante lição de 1905: é preciso destruir o poder das forças opressoras antes que este destrua o Poder Popular.

Os meses passam e o governo provisório não atende às reivindicações das ruas. Seu descrédito ante as massas populares cresce ainda mais. Em sentido inverso, a confiança nos bolcheviques aumenta, fazendo com que suas ideias se tornem hegemonia nos sovietes. Em meio à extrema precarização da vida, os de cima não conseguiam mais governar como antes e os de baixo não queriam mais retornar à difícil vida que levavam.
Um setor do governo provisório, comandado pelo general czarista Kornilov, ensaia um golpe contra o próprio governo. Entre o ruim e o pior, os bolcheviques mobilizam os trabalhadores para o combate contra Kornilov, sem gerar ilusões quanto as intenções do governo provisório: “Não o apoiamos, e sim desmascaramos sua debilidade.” Kornilov é derrotado e as massas populares aderem ao bolchevismo definitivamente.
O campesinato se levanta. O Partido Bolchevique defende a entrega imediata das terras aos agricultores e trabalha para que o movimento no campo se una à luta dos operários na cidade. O vínculo com e entre a classe trabalhadora se estreita ainda mais.

1917 marca o início do ciclo de revoluções socialistas, com forte impacto na trajetória social do mundo ainda hoje. O Muro de Berlim caiu em 1989 – mas caiu do lado errado. Hoje, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas não existe mais, mas essa heroica experiência, sem precedentes na história humana, serviu para mostrar que, além de necessária, uma outra forma de organizar a vida é possível de ser construída.
Os soviéticos interviram decisivamente para uma série incontável de conquistas populares. Países da África se libertaram do julgo colonial com seu apoio, o nazifascismo foi derrotado com a resistência e ofensiva de seu povo, as mulheres avançaram de forma nunca antes vista para superação das desigualdades de gênero. Até a banda capitalista do planeta teve que fazer inéditas concessões à classe trabalhadora em seus territórios, com medo desta seguir o repertório vermelho. Para citar alguns exemplos.
Os revolucionários e revolucionárias daquele tempo ousaram vencer, constituindo com isso o mais abominável dos pecados para quem desfruta da vida na parte de cima da pirâmide social. Como toda obra humana, muitos erros e até crimes foram cometidos. Crimes que, na sociedade capitalista, naturaliza-se e se estimula como valor e princípio, diga-se de passagem.
Que os desvios não escapem à uma imprescindível e permanente autocrítica, nem muito menos sirvam de justificativa para abandono do ideal de libertação. Até porque a humanidade, 100 anos depois de hoje, dependerá inteiramente do que fazemos agora com a memória da generosidade soviética de 100 anos atrás.
*Texto originalmente publicado em Informativo Redentorista, Vice-Província de Fortaleza.
**Thales Emmanuel é militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
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