Crônica - O hiato entre o romantismo e o realismo educacional - Manoel Messias Pereira


O hiato entre o romantismo e o realismo educacional

O conceito de família que via nas cartilhas escolares era muito semelhante aos anúncios de margarinas, pessoas brancas e felizes sentadas na mesa, o pai lendo o jornal, e a mãe submissa. O caminho da escola sempre era encantado com flores e borboletas floridas voando nos ambientes. As ruas todas bem calçadas. As casas sempre tinham um jardim com margaridas e rosas e no fundo uma hortinha, com legumes e verduras.

O conceito de família que tenho em mente era meu pai afrodescendente, assim como a minha mãe, ele trabalhando de descarregar caminhão ou em máquina de benefícios, minha mãe trabalhado de empregada domestica. Numa situação econômica precária, morando num ambiente sem luz elétrica, num ambiente em que as ruas eram sem asfalto e sem calçamento, mas assim mesmo caminhava pra escola. Na minha casa quando era criança tudo era muito divergente das casas da cartilha.

 E logo meu pai arranjou um jeito de ir embora porém já tinha outras três famílias constituídas inclusive com filhos. Foi preciso sair daquele casarão antigo de escadas de madeira, em que tantas vezes vi o meu pai embriagado tentar subir e sempre parava na escadaria. Meu pai foi embora e ficou minha mãe, eu e mais duas irmãzinhas, cujo a menor tinha apenas dez meses.

Vi minha mãe planejando, trabalhar de segunda a sábado, e ter parte de sua vida de moça nova dedicada ao carinho de mãe, instruindo-me no respeito coletivo, no respeito a todas as pessoas e a natureza. E sempre colocando que em quaisquer ambiente que nós crianças, filho e filhas dela deveríamos representá-la, e nunca decepcioná-la. Na escola tínhamos que demonstrar e ser sempre educado, amável, e tratar a todos com a formalidade, que a boa educação manda. E ela sempre dizia somos negros e sempre seremos cobrados, não pelo aquilo que fazemos, mas pela cobrança que uma sociedade preconceituosa, que sempre vai querer impor sobre nós a sua superioridade.

De princípio vi minha mãe imigrar-se em diversos cultos religiosos, ela foi católica, e por alguns constantes desmaios dentro da missa da catedral de São José do Rio Preto-SP, convidada a fazer orações em casa. Daí ela foi para o culto Pentecostal, mas por passar mal também dentro destas igrejas, acabando se encontrando no Espiritismo. E por fim nos terreiros de Umbanda. Sendo iniciada, e formada, com nome como Padrinho Nelson de Santos e Joâozinho da Goméia. Formalizando um terreiro em 1965. Um período em que vários templos foram investigados pela policia política no Brasil.

O dia que perguntaram-me sobre a minha formação religiosa na Escola Cenobelino de Barro Serra em São José do Rio Preto-SP, e eu disse que frequentava os cultos afros, recordo que a professora e outros profissionais disse-me você não tem religião, e essas coisas são apenas cultos. E no meu silêncio de garoto negro, criança preparada para receber o processo discriminatório, pensei comigo como disse Jesus na cruz "Pai perdoa porque eles não sabem o que dizem". E vale ressaltar que sempre soube muito mais da Igreja católica do que muitos católicos pois sempre via a minha mãe ler as chamadas histórias sagradas, e as vidas dos santos católicos uma coisa que é interessante, que quando hoje você puxa um assunto deste com qualquer católicos eles demostram um grau de ignorância assustadora. Mas deixa pra lá. E por outro lado via que a escola nada tinha de laicidade no contexto das religiões, assim como até hoje nos tribunais, na Câmara de vereadores,  nas repartições públicas, onde estão os cobradores de impostos, podemos ver a figura do Crucificado, da Bíblia sobre a mesa. E todos não se cobram pra entender que neste país, tem o mundo convivendo harmoniosamente e mesmo sendo o Cristianismo a maior religião do mundo, temos por aqui, Budistas, Induístas, Islâmicos, Vedantas, além de cultos afros, turquias, e com um detalhe, todos não sendo representados no contexto ou desrespeitados no mesmo espaço. Pois isso é uma forma de inibir o diferente, de quem tem o dom de falar em igualdade, mas estabelece de forma evidente o processo de desigualdade.

A Educação passa também por essa farsa, que vem montada na hipocrisia desta sociedade medíocre, que agora vem de maneira sorrateira com a chamada "Escola sem Partido", que na verdade é uma estupidez, pois a Educação que recebemos por parte do Estado faz parte da ideologia do próprio Estado. Se estamos vivendo a orgia do sistema capitalista, um sistema bom para quem é capitalista, obviamente e nós  somos afetados, nós estudantes e pais somos só trabalhadores, pessoas que tentam vender a apenas a sua força de trabalho, sendo que quem mantém o preço sobre estes trabalhos e operações são os donos dos meios de produção portanto somos compelidos a ter salários que nunca nos tens possibilitados emancipar-nos financeiramente. Num mundo em competições e em plena operações da absolescência das mercadorias, que em outras palavras é o chamado consumo conspícuo, onde todos estão consumindo graças aos trabalhos de marketing e propagandas em que é necessário ter o dinheiro disponível, para gastar, mas no meio do caminho há desemprego, a salários sem reajustes, incompatíveis com o níveis de agressividade do mercado.  E daí não me venham de maneira truculenta posta o Estado de plena isenção ideológica. E ainda mais dando ao filho do trabalhador uma escola, que falta tudo até ventilador numa cidade em que chega aos 40% de calor. enfim é a escola do desrespeito governamental. Sem deixar de lembrar que os membros do corpo docente do Estado de São Paulo, tem três anos sem reajustes.

Enfim o que é a Educação que desejamos, é aquela concebida como produção do Saber. Não é para o mercado apenas, mas para emancipar o ser humano de forma civil, social, intelectual, cultural e educacionalmente. Pois todo o ser humano é capaz de elaborar ideias,  possíveis atitudes e uma diversidade de conceitos. O Ensino como processo em que os professores são produtores do saber e o aluno consumidor do saber. As aulas será sempre produzidas para que haja essa harmonização do entender no transmitir e na recepção educacional, pois o aluno precisa e deve aprender esses conteúdos para ultrapassar o chamado saber espontâneos, que ele vai aprendendo, fazendo o caminho com o caminhar. Todo o ser humano precisa produzir sua própria existência. e essa produção ocorre através do trabalho sendo essa a diferença entre os seres humanos e os outros animais. A sociedade está no indivíduo assim com o indivíduo está na sociedade.

E é neste estágio entre a ilusão idealista da cartilha e o realismo da existência, vive o professor, a professora, todos no desamparo social e intelectual, muitas vezes como um cachorrinho de madame que caiu de um caminhão de mudanças. E essa alegoria é se esse cachorro fosse vira lata saberia se virar, como nós negros pobres, vivendo no hiato da exclusão social, na periferia da própria existência. Pois a sociedade está no indivíduo assim como o indivíduo está na sociedade. Mas o cachorro da madame vai ter um sofrimento superior e pode até ficar traumatizado. E sei que como minha mãe me ensinou ainda menino na primeira infância, "vivemos numa sociedade preconceituosa que vai cobrar ou impor sobre nós   a sua superioridade." Mas é  diante da adversidade que seremos formais, amáveis, sábios em nossos silêncios, recorrendo ao trato coletivo e individual usando a solidariedade, a fraternidade, o internacionalismo e a busca dos direitos universais  entre nós trabalhadores iguais, como forma de nos socorrer. 


Manoel Messias Pereira

professor, poeta e cronista
Membro da Academia de Letras do Brasil - ALB
Membro da Associação Rio-pretense de escritores - ARPE
São José do Rio Preto -SP. Brasil




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