Beleza negra, beleza Cívica



Beleza negra, beleza cívica
Quando cheguei ao Schomburg Center for Research in Black Culture em Nova York, tinha um interesse bastante pontual: pesquisar os concursos de beleza da imprensa afro-americana entre 1900 e 1930. Como e onde ocorriam? Quem os promovia? Como eram as candidatas? Quais seus fenótipos? Quem as escolhia? Que prêmios ganhavam?
Essas e outras perguntas eram motivadas por alguns aspectos: minha investigação em curso de temática similar nos jornais negros de São Paulo da mesma época, a pouca presença feminina em tal material, a escassez na historiografia brasileira de estudos que articulassem gênero, raça e beleza, conforme feito por Maria Aparecida Lopes (2012) para o caso de São Paulo entre os anos 1920 e 1940, e o desejo de realizar um estudo comparativo entre Brasil e EUA que tivesse como foco as mulheres negras e sua participação nos movimentos antirracistas do século XX.2 Entretanto, com o tempo e a conquista da intimidade com a documentação afro-americana, a recorrência de um inusitado material mudaria, para sempre, não apenas os rumos da investigação, como da orientação de minha intervenção como historiadora.
Nos EUA de começos do século XX, era possível para afro-americanas "melhorar" a aparência com a ajuda, principlamente, de dois artigos: cremes de clareamento para rosto e corpo e tônicos de crescimento capilar. Ao menos era isso o que sugeriam as centenas de anúncios de produtos dessa natureza, voltados para as mulheres de cor, e que chegavam a tomar conta de mais da metade das edições de muitos títulos de uma combativa "nação da imprensa negra" [3] (Pride e Wilson, 1997).
Ao folhear as revistas negras, descobri meninas, senhoritas e senhoras de cor que compartilhavam um mesmo sonho: serem belas. Era interessante observar que, para elas, a beleza possuía um significado que transcendia o aspecto visual. Sim, é bem verdade que ser bonita tinha a ver com ter uma "boa aparência". O mesmo desejo também se fazia presente entre as mulheres brancas, conforme sugerem os comerciais de empresas como a Pond's, a Palmolive, a Pompeian Beauty e outras. Todavia, existia ao menos uma particularidade que tornava possível pensar a "beleza negra" como um conceito histórico.  A publicidade cosmética afro-americana foi categórica ao enfatizar tal particularidade por meio de uma definição específica de beleza, uma "beleza cívica" (Gill, 2004).
Se por um lado as motivações para criar uma definição para o belo eram universais, porque, tal como acontecia com outros grupos étnicos, os negros tentavam se adequar aos pressupostos da modernidade enfatizando a necessidade de produção de uma nova mulher, elas também eram particulares, porque diziam respeito a uma feminilidade mediada pela experiência da escravidão e por seu legado. Assim, a categoria de beleza negra era "cívica", pois tinha um objetivo específico que lhe era muito caro: superar as marcas de um passado repleto de dores e subtrações sem, contudo, apagar as glórias, a força e a inventividade de escravas e descendentes. Num diálogo criativo com as teorias eugênicas, a pele clara manteve-se como um capital social crucial, o que culminou, nas palavras de Chandler Owen no jornal The Messenger (1924: 81), na "supremacia da boa aparência" mulata.
Essa hegemonia não se dava ao acaso, mas numa contraposição a antigas imagens femininas negras como a da Mammy, sempre pronta a servir, com sua "compleição escura" e suas "roupas de doméstica" (Jewell, 1993: 39). Afinal, num contexto de liberdade em construção, era preciso oferecer outras imagens que não aquelas imorais, animalizadas, subservientes e caipiras. Nesse contexto, não foi à toa que Chandler Owen afirmou que todas as pessoas, à exceção das "horrivelmente feias, escuras e deformadas", estavam se atirando com unhas e dentes à "louca luta pela beleza" (Owen, 1924: 81). Sujeito de um cenário de liberdade, movimentado por recriações permanentes da pigmentocracia (Xavier, 2012), o editor de The Messenger sabia que, em meio ao turbilhão de "emoções da pele", a solução vendida como a mais cabível para tornar a imagem das mulheres de cor respeitável e virtuosa era "suprimir" o seu "pigmento" (Idem).
A ideia do civismo qualificador de uma beleza específica – a negra – dimensiona que na cosmética afro-americana o que estava em jogo era construir a "feminilidade respeitável" (Wolcott, 2001:3), fabricando uma aparência suficientemente convincente do respeito e da dignidade das mulheres. Falo de mulheres que eram previamente julgadas por traços físicos que denunciavam sua descendência africana, ou seja, a pele e, não menos importante, o cabelo.4 Nesse sentido, as experiências de manipulação do corpo negro também revelam um intento feminino. Qual seria? Desconstruir estereótipos através da comercialização e uso de produtos criados para encontrar a tonalidade de pele e o penteado mais adequado para representar o que julgavam ser uma beleza cívica negra.

Em busca da feminilidade respeitável
O mercado da beleza negra carregava em seu bojo uma proposta de revitalização da imagem, calcada no discurso racializado de melhora da aparência (Damasceno, 2011). Isso pode ser observado em slogans como "Da cabana à mansão, de escrava a líder social"5 e "Glorificando nossa feminilidade". Com narrativas que conectavam aparência, trabalho e ascensão social, empresas como a Madam C. J. Walker Manufacturing Company passavam "mensagens de esperança"6 a "mulheres de todas as idades",7 lembrando-lhes que era possível resolver "o problema financeiro",8 "alcançar o sucesso"9 e "aumentar a beleza",10 conforme demonstrava a história da própria Madam Walker, louvada como a "maior benfeitora da Raça".11
Os anúncios colocam-nos diante da luta incesssante dos afro-americanos por respeitabilidade e ascensão social para o feminino por intermédio da reconstituição de noções de beleza física e moral referenciadas pela tez clara e pelo cabelo bem penteado. Facilmente captadas pelas centenas de ofertas de produtos de clareamento e de tônicos capilares, tais noções tentavam ir ao encontro daquilo que era considerado moderno, civilizado, inteligente e, portanto, adequado para os sujeitos da pós-abolição, novas mulheres e novos homens negros (Xavier, 2012).
Ao lançar mão de hierarquias coloristas, simbolizadas por meio do contraponto imagético de black e mulato, os representantes da raça plantaram no seio da comunidade leitora uma definição de good look restrita à pele clara. Apesar de adequada às exigências da modernidade – cosmopolitismo, urbanização, bom gosto, sofisticação –, tal definição vinha de longe, pois sua história começara nos tempos da escravidão, quando a epiderme clara foi se tornando um distintivo intrarracial primordial.




Requisito indispensável para alcançar o sucesso, finda a escravidão, a boa aparência, ou melhor, o desejo de possuí-la conectava-se a lutas diversas. Desse modo, o mercado do clareamento representou um dos mais importantes caminhos para a construção de um feminino de cor bonito e respeitável, que, ainda que paradoxalmente, servia de contraponto aos valores da sociedade racista norte-americana.

Tranças transnacionais: uma história social da beleza negra
Assim como nos EUA, no Brasil, a ideia de que o melhoramento da raça negra podia ser feito via tratamentos de beleza que primavam pelo clareamento da pele fazia-se presente na cabeça dos jornalistas de cor. Ainda que poucas, se comparadas à estrondosa quantidade norte-americana, as propagandas da imprensa negra paulista pós-abolição comprovam a existência de uma cosmética racializada, na qual arrumar o cabelo ganhava mais força, se feito em conjunto com técnicas miraculosas, dirigidas ao aperfeiçoamento da compleição.
Ao considerar propagandas da imprensa negra brasileira e norte-americana como fontes para possíveis comparações focalizadas nas representações das mulheres negras, a noção de "beleza cívica" reivindicada por uma indústria cosmética que, através de um discurso racializado, tentava aliar boa aparência e bom comportamento à conquista de uma cidadania plena, pergunto: é possível pensar um mercado da beleza negra com fronteiras transnacionais entre Brasil e EUA? É possível construir uma análise transnacional que, tomando a "mulatice" como foco, esclareça mutuamente as realidades brasileira e norte-americana no tocante ao gênero, à raça e à cosmética no pós-abolição?


Para inciar a resposta, considero o que Brent Edwards denominou "quadro da negritude", destacando a "virada transnacional" como contraponto a determinado tipo de história comparada baseado na dinâmica descritiva do aqui versus o lá (Edwards, 2003; Seigel, 2005; Nunes, 2008; Kirk, 2009). Sem dúvida uma abordagem transnacional tem o seu quê de comparação, uma vez que pressupõe o cruzamento de personagens e eventos provenientes de espaços distintos. Entretanto, acredito que a diferença entre uma perspectiva meramente comparativa e uma transnacional resida em dois aspectos cruciais: a ênfase em experiências compartilhadas ao redor de um mesmo tema e a recusa em aceitar os limites teóricos e geográficos do Estado-Nação como a única territorialidade possível na investigação histórica.
Com base nas perspectivas acima, creio não haver metáfora melhor do que a da trança, pois ela nos ajuda a compreender as conexões entre Brasil e EUA, dentro daquilo que entendo como uma história social da beleza negra, ou seja, um campo de estudos comprometido em resgatar os sentidos culturais, políticos e sociais que o físico assume, tendo a raça negra e seus processos de racialização próprios como foco em diferentes territórios pós-abolição.


Sendo o Atlântico o couro cabeludo, os países representam duas pontas de um trançado que passou por várias mãos e sofreu inúmeras intervenções até que se tornasse um penteado vistoso. Assim, se as "aristocratas da penteadeira" afro-americanas tinham suas receitas para se tornarem belas e respeitadas, as mulheres da raça da pauliceia não deixavam por menos. Quando o assunto era o cabelo e a pele, o "meio negro" 12 também tinha seus segredinhos infalíveis rumo ao sucesso.
Por exemplo, caso quisessem "alisar o cabelo com perfeição" e "por preços módicos", bastava se dirigirem à rua Conde São Joaquim, 45, e procurar pela "Sra. B. P. Costa". Todavia "Didicta",13 como também era chamada, não fora pioneira nos "negócios do cabelo". Desde os anos 1920, se as clientes desejassem "cabellos lisos sem queimar, sem enfraquecer, sem mudar de cor", deveriam sentar-se numa das cadeiras do prestigioso Instituto Dulce. Lá, pagando 3$000, teriam acesso a um "serviço completamente diferente dos que diariamente se vêem pela rua". Voltado apenas para as "senhoras", o estabelecimento era conhecido pela realização de "cortes, ondulações e aperfeiçoamento das sobrancelhas".14 Já o Salão Brasil, de propriedade do Sr. Manoel Simões, fazia questão de deixar registrado mais um aniversário, que reafirmava seu sucesso entre as mulheres da classe de cor.15
Embora o Instituto Dulce oferecesse tratamentos para "ondulações", certos tipos de carapinhas deveriam incomodar as freguesas que batiam às portas do "Salão para Alisar cabelos Crespos" à procura de mudanças radicais. Dona de um "sistema rápido, infalível e barato", a casa prometia "alisar qualquer cabelo", "por mais crespo" que fosse, "sem prejudicá-lo". Com filiais na Praça da Sé, em São Paulo, e na Avenida Passos, no Rio de Janeiro, as interessadas deveriam ligar e agendar um horário para realizar o tratamento que levava nada mais que "1/2 hora". Tanta dedicação em busca de madeixas lisas era recompensada com a distribuição gratuita do "cabelisador", um tipo de pente quente usado para esticar o cabelo.16


Com vocabulário similar ao da cosmética afro-americana, as ofertas para obtenção de uma aparência melhorada eram apresentadas como tratamentos "científicos":


Ao lançar mão dos vocábulos "clarear" e "amaciar", as orientações para correção de problemas dermatológicas como sardas e espinhas traziam embutidas a promessa de que assim como num "milagre" era possível alterar a constituição física dos sujeitos retintos, tornando-os donas de uma "cútis" mais alva e macia, assegurada por legítimos brancos, produtores de uma "fórmula científica alemã".
Ao ter em vista as distinções entre uma perspectiva comparada e outra transnacional, considero que existem ao menos duas maneiras de se construir histórias transnacionais. A primeira delas, evocada nesta seção pelo cruzamento das propagandas cosméticas do Brasil e dos EUA, diz respeito a um cruzamento das duas realidades a partir de temática comum por meio da qual o pesquisador acredite ser possível estabelecer conexões mais baseadas nas experiências dos sujeitos do que nos limites territoriais de cada país. Cabe ressaltar que, neste caso, o diálogo entre os sujeitos é empreendido pelas mãos do historiador. A segunda forma de construir uma perspectiva transnacional é quando as conexões entre dois ou mais territórios distintos são realizadas pelos próprios sujeitos envolvidos no tempo em que ocorreu o processo em questão. Nesse caso, cabe ao historiador decifrar os sentidos que tais diálogos podem revelar.
A seguir, tendo em vista a diferenciação acima, darei continuidade à proposta de tratar a "beleza negra" como conceito e objeto de estudo da história social rascunhando mais duas possibilidades de história transnacional. Ao escrevê-las, tenho em vista a importância de reconstituir a história dos direitos, da cidadania e do capitalismo dentro da perspectiva da interseccionalidade – da articulação entre gênero, classe e raça –, cruzamento ainda pouco enfatizado na historiografia brasileira.

A "classe dos homens de cor" e os "homens da raça": gênero e masculinidade na imprensa negra
Enquanto afro-americanos lutavam para erguer sua "beleza cívica", em 26 de julho de 1931 O Clarim d'Alvoradaressaltava a importância de se criar uma Sociedade Cooperadora para o Levantamento da Raça.17 Os "irmãos patrícios", que acompanhavam o jornal desde os idos de 1924, quando de seu surgimento na "bella capital",18sabiam ser este intento bastante antigo na mente e na pena de José Correia Leite. Fundador e redator-chefe da publicação, Leite, como era conhecido, havia se afirmado como um dos mais importantes militantes do meio negro de São Paulo, devido a textos e preleções sobre a necessidade de a "mocidade negra" unir-se em busca dos seus direitos. A falta de uma "completa união" no "nosso meio",19 escrevia ele, era o principal motivo para que os negros vivessem "sem lar", e isto só seria resolvido com a criação de uma "sociedade beneficente" que zelasse pelos "interesses sociais" e pelas "tradições" da "legião de homens pretos". [20]
O parágrafo acima indica que a primeira possibilidade de transnacionalismo, ligada ao papel do historiador no cruzamento das fontes, pode residir nas correlações entre os "homens da raça" afro-americanos e a "classe dos homens de cor" paulistas. Embora, até onde se saiba, os negros dos EUA não tivessem conhecimento de que os militantes de cor de São Paulo se autodenominvam de tal forma e vice-versa, as duas categorias apresentam sentidos análogos se tivermos em mente que ambas elegem os homens letrados do mundo livre como líderes das massas negras e, dentro das hierarquias de gênero, "leitores" responsáveis, inclusive, por escolher "candidatas merecedoras de votos" em certames de "belleza feminina" promovidos pelos jornais da dita "classe":
Abrimos com o presente número um concurso de beleza feminina, cujo concurso será em duas tiragens distribuídas nas seguintes formas: na primeira tiragem, a partir da próxima vindora, daremos uma demonstração geral de todas aquelas que mereceram votos e, na segunda, o resultado final do concurso. Aquela que bater o "record" ornamentará com o seu retrato a primeira página de nosso jornal, caso consinta que nós assim procedemos. N.B. – O concurso é bem entendido, entre a "classe" e os votos devem ser dados pelos homens que forem assinantes, enchendo para este fim o cupom seguinte: Caro Leitor, qual é a moça mais bella no seu parecer? É.. Rua... Assignante.21
Estreitando as relações transnacionais tomando como foco a masculinidade negra, percebemos que, no mundo afro-americano, nem só Madam Walker e Annie Malone sabiam da importância da beleza feminina, na qual, além da pele clara, um cabelo apresentável era primordial. Lá, um dedicado pai, que conhecia bastante as técnicas dessas e de outras culturistas, aconselhava uma ente querida:
Você encontrará curiosos um pouco chatos. As pessoas te questionarão sobre o seu querido e doce cabelo brown crinkley. Você deve saber que o brown é tão ou mais bonito que o branco e da mesma forma o cabelo crinkley em relação ao liso, ainda que o primeiro [o crinkley] seja mais difícil de pentear.22
Ao orientar a filha, às vésperas de se tornar uma estudante da Universidade de Oxford, W. E. B. Du Bois reforçava a emergência do cabelo como sujeito "doce" e "querido", um símbolo fundamental dentro daquilo que as próprias afro-americanas denominavam "feminilidade negra". Nesse sentido, não há como passar despercebido que uma das lideranças masculinas colored de maior prestígio à época tenha eleito o cabelo feminino como principal tópico de uma conversa que visava preparar sua descendente para a vida no mundo branco.
Como um homem da raça, era sua tarefa alinhavar o espírito de Yolande para os "chatos" de plantão, como ele por experiência própria sabia, seus futuros colegas brancos na universidade. Assim, através de uma representação visual colorista, o fio escolhido pelo historiador e sociólogo para abordar o racismo contra o negro foi o da "curiosidade", do estranhamento despertado pelo cabelo crinkley da filha, um traço que, a seu ver, a rotulava como uma mulher afro-americana, a despeito da pele clara.
Os debates promovidos por esses homens sobre as articulações entre "estilizações negras" (Tate, 2009) e orgulho racial, tendo o feminino como foco, descortinam intersecções de gênero e raça que determinam o corpo da mulher negra como um "terreno apropriado pelo masculino" (Rooks, 1996: 15). Ao pensar suas intervenções como parte do papel de homens da raça que supunham saber o que era melhor para "suas" mulheres, observa-se a necessidade de novas pesquisas empenhadas em examinar as hierarquias entre masculino e feminino dentro do mundo negro.23 Nessa lógica, questionar o uso "decorativo" (Carby, 2001: 5) das palavras "gênero" e "sexualidade" para adjetivar as mulheres (não apenas negras) e suas histórias pode ser um caminho relevante para desnaturalizar o homem da raça e seu trabalho intelectual como aqueles mais relevantes.
Creio que por mais que os anúncios da indústria cosmética brasileira e norte-americana tragam imagens construídas ou, no mínimo, selecionadas ou editadas pelo masculino, eles também podem ser entendidos como produtos de identidades edificadas por mulheres acerca de suas vidas, corpos e percepções e sobre o que acreditavam ser a melhor representação visual para a vida no mundo livre. Desse modo, tal documentação serve para investigar conflitos de gêneros, dentro dos quais distintos projetos de construção imagética chocavam-se ou convergiam entre si.
A sobreposição do masculino ao feminino foi uma marca, tanto do periodismo negro brasileiro, com suas iniciativas voltadas para a "classe dos homens de cor", quanto do norte-americano, controlado por intelectuais de cor pertencentes ao que W. E. B. Du Bois chamou the talented tenth.24 Conduzidos por líderes como James Weldson, Philip Randolph, Charles Owen nos EUA e José Correia Leite, Jayme de Aguiar, Lino Guedes, Deocleciano Nascimento, Gervásio de Moraes no Brasil, jornais e revistas negros ficaram conhecidos como um universo notoriamente masculino. Entretanto, a ideia de que o melhor rumo a ser tomado pela raça negra estava na mão dos homens não era algo inquestionável.
Nos EUA, desde ao menos o final do século XIX, diversas afro-americanas destacaram-se como intelectuais de prestígio no seio das elites de cor letradas, entre elas Katherine Tillman:
Por um período de dois séculos e meio afro-americanas foram escravas das pessoas brancas neste país (...) Embora descendentes de povos bárbaros, as mulheres negras prontamente adaptaram-se aos requistiso da vida civilizada e a maioria delas desempenhou execelente trabalho feminino (...) O que nós podemos dizer do progresso delas para convencer amigos céticos, brancos e negros, de que elas são merecedoras de crédito?25
Já no Brasil, Eunice Paula da Cunha convocava as "patrícias" a lutar pela "reabilitação social", movendo-se e sacudindo-se contra o "cativeiro moral", que "ainda" dominava os "negros":
E nós, patrícias, precisamos nos mover, sacudir a indolência que ainda nos domina e nos faz tardias. O cativeiro moral para nós negros ainda perdura. Notemos a fundação desta Escola Luiz Gama com o fim de preparar meninas de cor para serviços domésticos. (...) Por esta iniciativa se vê que para os brancos não possuímos outra capacidade, outra utilidade ou outro direito a não ser eternamente o de escravo.(...) Mas isto não sucederá... A vida de um povo depende da sua juventude. Pois bem, nós além de jovens somos mulheres (...).26
Em direção correlata, nos anos 1950, Maria Nascimento procurava caminhos para "libertar a gente negra" da "ignorância" e do "anafalbetismo", "as piores formas de escravidão".27Ao reivindicarem para si a missão de conduzir as massas de cor por meio de projetos que articulavam assistencialismo, educação e ascensão social no mundo livre, figuras como Katherine Tillman, Eunice Cunha, Maria Nascimento e tantas outras interrogavam, ainda que sutilmente, relações de poder que as rotulavam como representantes do sexo frágil. Sem negar a força, a virilidade e a coragem, supostamente inerentes aos homens negros, elas tentavam mostrar que, para alcançar um destino afortunado, os membros da raça deveriam considerar as vozes e os projetos femininos para o amanhã.
Nesse contexto, permeado por tensões, a publicidade da indústria cosmética representa um espaço privilegiado para observar as formas pelas quais os papéis de gênero foram construídos e conduzidos pela "raça". Embora  não possamos descartar a possibilidade de os anúncios terem sido redigidos por homens, suas narrativas quase sempre traziam (explícita ou implicitamente), as mulheres negras como protagonistas. É claro que isso tinha a ver com o papel que tais personagens desempenhavam como consumidoras por excelência numa cultura "moderna", que investia esforços na construção de novas mulheres, que, sem abrir mão da antiga condição de mães e esposas, deveriam agora aprender a se comportar no mundo público, seja como trabalhadoras, seja como simples transeuntes de ruas e avenidas ou frequentadoras de sofisticados cafés.
Diante da centralidade que as mulheres ocupam na história da cosmética negra, aliada à maioria masculina na imprensa negra (principal veículo de comunicação do mercado da beleza negra), cabe perguntar: é possível reconstituir as agências femininas através de discursos e representações produzidos majoritariamente por homens? Como? Caminhos ambíguos e variados fazem-me acreditar que sim.
O mínimo a ser dito é que os anúncios da cosmética, com seus discursos e imagens, significam, no conjunto, uma forma de reconhecer a centralidade que o feminino desempenhou no processo de produção de outros sensos de representação para a comunidade negra, condizentes com o mundo urbano, desbravado pela gente de cor nas primeiras décadas do século XX.

Desvendando os "segredos brasileiros": Anita Brown e os negócios do cabelo
Para discutir nossa segunda proposta de história transnacional (quando os sujeitos do passado constroem suas próprias relações), trago como exemplo mais uma propaganda da cosmética afro-americana. Creio que sua narrativa propicia a observação de instigantes zonas de contato entre Brasil e EUA.
Publicada no Chicago Defender no dia 29 de maio de 1920, nela Anita Patti Brown vangloriava-se da "beleza" de sua "pele". Entretanto, como não era "egoísta", a culturista afro-americana decidira compartilhar com seus "muitos amigos" e com a "irmandade inteira" seu "querido" e "bem guardado segredo". O milagre da cútis bonita tinha sido realizado graças ao uso de um produto encontrado nos "salões de beleza do Rio de Janeiro, Brasil e América do Sul".
"Comumente" chamada La Traviata "nas ruas do Rio", Brown recebeu da "Senhora Alvey", as "fórmulas". Depois disso "misturou-as cuidadosamente" e "passou a vendê-las por menos da metade do preço que era pedido pelo artigo no Brasil". Assim, graças às suas sensibilidade e espírito empreendedor, as afro-americanas poderiam beneficiar-se das maravilhas das Brazilian Toilet Luxuries, que, entre outras coisas, garantiam o "branqueamento perfeito" pelo "módico preço americano".28


Conhecida no Brasil, mais especificamente, "nas ruas do Rio", como uma viajante, a empresária frequentou salões de beleza e consumiu artigos do país voltados para o "cuidado da pele". O uso de seu próprio corpo como cobaia, que viria a confirmar a eficácia dos "cosméticos de luxo brasileiros", fez com que Anita Brown achasse importante não só levar a linha para os EUA, como apresentá-la às consumidoras como um tratamento originário do país que visitara. Nesse caso, foi ela que, em contato com cenários e sujeitos brasileiros e sul-americanos, conectou territórios e personagens, tornando-os transnacionais.
Apesar de a propaganda não fornecer elementos que nos permitam afirmar que os salões que Brown frequentou tanto no Brasil quanto na América do Sul eram exclusivamente voltados para os negros, o intercâmbio de mercadorias e ideias ligadas à beleza feminina negra sugere que as práticas de clareamento também eram comuns em ao menos um território do Atlântico sul pós-abolição.


Apresentado na imprensa afro-americana como um paraíso racial, devido à intensa miscigenação entre brancos e negros, o Brasil em diversas ocasiões apareceu em jornais como o The Baltimore Afro-American, que na primeira página celebrava a eleição de Nilo Peçanha como o "primeiro presidente de cor no Brasil",29 o Chicago Defender, que afirmava ser o "preconceito de raça desonhecido no Brasil",30 o "país ideal para o homem negro"31, e em magazines como o The Crisis, que, entre suas dezenas de comerciais, vendia lotes no país que considerava a "terra das oportunidades" para aqueles que queriam "liberdade e poder".32
Com todas essas imagens positivas sobre as relações raciais, não é de estranhar que a Terra Brasilis tenha sido apropriada como uma espécie de selo de qualidade para artigos da cosmética afro-americana que prometiam não apenas boa aparência, mas, sobretudo, respeito e ascensão social para mulheres negras no mundo livre. Vendido em Oklahoma, o Brazilian hair grower, por exemplo, notabilizava-se pela conquista de "mais de 15.000 clientes desde sua entrada nos EUA em julho de 1916".33


Possuir o selo Brasilis, de fato, deveria ser um traço que diferenciava artigos de beleza inspirados pela "terra das oportunidades" dos demais, como indica outra propaganda de Anita Brown. Exibida na revista The Crisis, em 1920, portanto nove anos antes da La Traviata que conhecemos acima, com ela, além de todos os tratamentos, a culturista de Chicago divulgava o "livro de bolso" com os "segredos brasileiros" para cuidar da pele. 34

Batendo às portas do céu
As narrativas do mercado da beleza tiveram papel importante na reconstrução da feminilidade negra e também na criação de um sistema colorista que hierarquizava afro-americanos e negros brasileiros, em especial as mulheres, com base na aparência clara ou escura, no cabelo crespo ou liso, nas feições finas ou grossas. Isso tudo era feito dentro de um sistema de opressão que se manifestou em escala global e que disseminou um modelo de beleza eugênica, criado e alimentado pelo mundo negro. Em vez de reduzir a ação de seus integrantes ao simples desejo de se tornarem brancos, considero que pensar tal modelo dentro da perspectiva da "agência Negra" possibilita complexificar a história das relações raciais no mundo atlântico, reconhecendo "processos de formação racial" múltiplos, elaborados como resposta ao racismo experimentado cotidianamente por sujeitos negros de diferentes tempos e lugares.35
Menos do que fazer uma história dos penteados, tampouco dos bleachings, é importante refletir sobre o papel desempenhado pela cosmética na constituição da nova mulher negra. Embora complementares, os dois mercados, da pele e do cabelo, possuíam linguagens e lógicas de funcionamento distintas. Dentro da tradição da história social, o estudo de tais lógicas mostra o quanto seus sujeitos procuraram negociar, fazendo escolhas individuais frente a um sistema normativo que trazia à tona ambiguidades e contradições acerca daquela que deveria ser a melhor representação visual para as distintas ladies de cor.36
Para salvaguardar o sucesso do matrimônio, da família e também da "Raça" como um todo, homens negros, proeminentes ativistas sociais, criaram sentidos masculinos para o que acreditavam ser a beleza feminina negra. Mulheres intelectuais, por seu turno, reconhecendo-se como as principais interessadas no assunto, entraram na disputa destacando que sua beleza poderia ser definida pela força com que batiam "às portas da justiça para pedir uma chance de equidade".37
Em meio às histórias cruzadas de gênero, raça e classe, tanto no Brasil quanto nos EUA as associações entre comportamento, beleza e ascensão social dentro da comunidade negra ainda guardam muitos segredos a serem revelados. Assim como o misterioso "empório da beleza" de Anita Patti Brown, eles permanecem trancados a sete chaves, esperando futuras investigações.

Notas

1 Agradeço à professora Martha Abreu, minha supervisora, pela sempre generosa, rica e bem-humorada interlocução. Do mesmo modo, registro minha gratidão aos participantes do Grupo de Estudo e Pesquisa Cultura Negra no Atlântico (Cultna/UFF) pelos animados debates sobre história atlântica, diáspora e transnacionalismo negros, fundamentais para a escrita deste artigo. Por fim e não menos importante, meu obrigada ao companheiro historiador Álvaro Nascimento pelas sugestões e leitura cuidadosa de versões preliminares do artigo.
2 Para conhecer a história dos movimentos sociais negros sob o prisma de suas lideranças, ver entre outros Santos (1998) e Alberti e Pereira (2007).
3 Diante da grande quantidade de títulos e do seu importante papel na construção de políticas de protesto e de unidade racial, a imprensa afro-americana é também chamada de "nação da imprensa negra" (cf. Gilliam, 1997: x).
4 Enquanto na historiografia brasileira há um silêncio sobre o corpo feminino negro, na antropologia destacamos, entre outros, um estudo sobre os significados do cabelo entre mulheres negras: o de Gomes (2008), para Minas Gerais. Na Jamaica, apontamos a centralidade da pesquisa de Tate (2009) com suas "estilizações negras". Ambas as etnografias confirmam o diálogo frutífero entre história e antropologia (Thompson, 2001), constituindo-se em referências indispensáveis à história social da beleza negra.
5 Da cabana à mansão, de escrava a líder social, MCJWMC, s/d.
6 Sistema Walker, in The Messenger: a message of democracy, jan. 1918, v. 2, n. 1, p. 36.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.
10 Glorificando nossa feminilidade, in The Messenger: World's Greatest Negro Monthly, mai. 1925, v. 7, n. 5, p. 212.
11 Idem.
12 O conceito de "meio negro" aparece nos depoimentos de José Correia Leite em diversas ocasiões em que o militante se refere aos participantes da imprensa negra, assim como aos frequentadores e membros de clubes, grêmios e demais associações de cor da cidade de São Paulo na Primeira República. Ao rememorar sua entrada no "meio negro" como frequentador dos bailes promovidos pelo "Elite Flor da Liberdade", Correia Leite deixou registrado: "Estou perdendo tempo com esses italianos. Eu tenho uma sociedade que é minha, meu povo, minha gente. Fui procurar e encontrei gente conhecida. Justamente um que foi uma espécie de irmão de criação para mim. Ele se chamava Manoelzinho e foi quem me apresentou outras pessoas. Assim, comecei a participar do meio negro que até então eu não conhecia". Tudo indica que a recorrência da categoria "meio negro" nos estudos de Florestan Fernandes e Roger Bastide deve-se à importância dos depoimentos de Correia Leite nas suas pesquisas. O trabalho pioneiro – Movimentos sociais no meio negro – assinado por Renato Jardim Moreira com a "colaboração" de Correia Leite também indica que a autoria do conceito é tributária das interpretações de Leite sobre essa parcela da população de cor paulistana. A respeito do "meio negro" e da trajetória de José Correia Leite, ver Leite e Cuti (1992: 27).
13 Cabellos Lisos, O Clarim d'Alvorada: legítimo órgão da mocidade negra, São Paulo, 26 de julho de 1931, ano 8, n. 34, p. 2.
14 Cabellos Lisos a 3$000, Progresso, 30 de novembro de 1920, ano 3, n. 30, p. 4.
15 Salão Brasil, Progresso, 30 de janeiro de 1930, ano 2, n. 20, p. 4.
16 Salão para Alisar Cabellos Crespos, O Clarim d'Alvorada: legítimo órgão da mocidade negra, São Paulo, ano 6, n. 23, p. 2.
17 Leite, Devemos fazer a nossa Sociedade Cooperadora para o Levantamento da Raça, O Clarim d'Alvorada: legítimo órgão da mocidade negra, São Paulo, 26 de julho de 1931, ano 8, n. 34, p. 1.
18 Leite, Vivemos sem lar, O Clarim d'Alvorada: órgão literário, noticioso e humorístico, São Paulo, 25 de janeiro de 1925, ano 2, n. 12, p. 2.
19 Tuca, João Theodoro-Desmemoriado, O Clarim d'Alvorada: órgão literário, noticioso e humorístico, São Paulo, 26 de julho de 1925, ano 2, n. 13, p. 3-4.
20 Leite, Vivemos sem lar.
21 Concurso de Belleza, O Menelick: órgão mensal, literário e crítico dedicado aos homens de cor, 1 de janeiro de 1916, ano 1, n. 3, p. 4.
22 Optei por não traduzir as palavras crinkley brown uma vez que elas têm significados restritos à língua inglesa. A tradução literal de crinkley para o português é enrugado. Palavra atualmente em desuso, crinkley foi uma das formas utilizadas para nomear o cabelo crespo nos EUA, o cabelo que "precisava" ser alisado; algo correlato aos nossos "pixaim" e "carapinha". Assim como no Brasil, dependendo do contexto em que crinkley era empregado, seu uso poderia ser considerado preconceituoso ou valorativo da "raça negra". Já brown é uma classificação racial baseada na cor da pele. Embora os contextos históricos sejam distintos, brown é correlato ao "moreno" brasileiro. 


23 Contribuição indispensável nessa direção é o estudo de Hazel Carby. Interessada em investigar o cânone masculino na história do pensamento afro-americano, a autora observa a construção da masculinidade negra entre meados do século XIX e final do XX, tomando como foco o processo de racialização do corpo do homem negro e problematizando a "natureza da representação cultural das várias masculinidades negras" em áreas como literatura, fotografia e música. Dentro de sua perspectiva feminista crítica, examinar personagens como Du Bois, Richard Wright, Martin Delany e outros na condição de "homens da raça" também se refere à necessidade de questionar a masculinidade afro-americana e suas conexões com raça e nação (Carby, 2001: 2). 24 O "décimo talentoso" foi o conceito criado por W. E. B. Du Bois para se referir aos homens de cor letrados e comprometidos com a educação dos membros da "raça" (Xavierr, 2012).
25 Katherine Tillman, Afro-American and their work (1895), in Henry Louis Gates & Gene Andrew Jarret (eds.), The new negro: reads on race, representations and African American culture, 1892-1938, Princeton: Princeton University Press, 2007, p. 280.
26 Eunice Paula da Cunha, Apelo às mulheres negras, O Clarim (Um Órgão da Imprensa Negra de SP), abril de 1935.
27 Maria de Lourdes Vale do Nascimento, A 'Fundação Leão XIII' e as favelas, Coluna Fala a Mulher, Quilombo:vida, problemas e aspirações do negro, jan. 1950, n. 5, p. 11.
28 Patti's Brazilian toilet luxuries, The Chicago Defender (The Big Weekend Edition), 29 de maio de 1929, p. 12.
29 Colored president elected in Brazil, The Baltimore Afro-American, 14 de abril de 1922 (apud Pereira, 2010: 123).
30 Race prejudice is unkown in Brazil, The Chicago Defender, 21 de janeiro de 1928 (apud Pereira, 2010: 114).
31 Brazil ideal country for black man, The Chicago Defender, 22 de janeiro de 1916 (apud Pereira, 2010: 114).
32 Brazil: do you want liberty and wealth in a land of plenty?, The Crisis: a record of the darker races, mar. 1921, v. 21, n. 8, p. 238.
33 Wy-ho-se (The Brazilian Hair Grower), The Half-Century Magazine, fev. 1918, v. 4, n. 2, p. 12.
34 Patti's Brazilian Toilette Luxuries, The Crisis: a record of the darker races, mai. 1920, v. 20, n. 1, p. 62.
35 O esforço de construir identidades negras coletivas que levem em conta processos de racialização e de "formação racial" distintos, em lugares variados (como no meu caso Brasil e EUA), é discutido por Edmund Gordon. De acordo com sua perspectiva, tal esforço insere-se no conjunto de práticas culturais dedicadas a expressar a humanidade e a luta pela liberdade dentro da "diáspora africana", práticas estas criadas a partir de conexões distintas estabelecidas com a "ascendência africana real ou imaginada" (Gordon, 2007: 94). 36 Sobre sistemas normativos, liberdade individual, ambiguidades e contradições nos processos históricos, ver a discussão de Levi (1992: 135-6).
37 Mrs. Mary Church Terrell, The progress of colored women, The Voice of the Negro: an illustrated monthly magazine - Our Woman's Number, jul. 1904, v.1, n. 7, p. 291-294.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Artigo - O dia de Èrê - Manoel Messias Pereira

História - A história de Madá - Manoel Messias Pereira